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Será que os artistas têm um ego enorme? – Parte 1 de 3
O artista francês Ben, criou entre uma série de obras-frases a seguinte sentença: “Arte não existe, tudo é ego.”
Aura estranha aquela do artista
“O que nos apaixonava era nos encontrarmos com artistas, passar uma noite ao lado deles, falar de arte. Comprar suas obras era nosso jeito de nos aproximarmos, de acompanhá-los.” – É o que confessa um casal de amantes de arte no ‘Colecionadores, entrevistas’, livro de Anne Martin-Fugier (ed. Actes Sud).
Hoje, sonhamos em apertar a mão do artista, visitar seu ateliê, seu “covil de criação”… ou ao menos de vê-lo fotografado nas revistas. Como se os artistas não fossem similares ao mais comum dos mortais. Devemos dizer que, muitas vezes, eles assim se manifestam – seja por um acessório, um jeito de se vestir, se pentear, se manter, como André Cadere, que nunca se deslocava sem seus bastões coloridos, aos quais acabamos o identificando. Como os artistas, artesãos anônimos na Idade Média, vieram a se colocar em cena e despertar uma tal fascinação?
As obras não alcançam. Os fotógrafos perseguem os artistas dentro dos ateliês, os colecionadores pedem para cumprimenta-los… Como a pessoa do artista pode ter alcançado, no decorrer da história, a importância que lhe é dada hoje?
Na Renascença, o artista torna-se o igual dos príncipes
O artista como indivíduo marcante aparece a partir da Antiguidade. Plutarco e Plínio o Antigo citam pintores e escultores cujo talento os distingue dentro da profissão deles – por exemplo Apeles, celebrado pela “graça” de suas pinturas, ou Zeuxis, do qual a lenda conta que ele pintou tão perfeito um cacho de uvas que os pássaros tentavam come-lo. Mas por mais marcantes que foram e apesar da estima dos poderosos pela habilidade deles – a lenda conta que Alexandre cedeu sua concubina favorita, Pancaste para Apeles quando se deu conta que o pintor tinha se apaixonado por ela enquanto a pintava – eles não foram considerados mais do que artesãos. Assim permaneceram na Idade Média.
A palavra 'artista'
A palavra “artista” apareceu só em 1395, segundo o dicionário ‘Le Petit Robert’, de modo que, mesmo com alguns nomes se sobressaindo, eles não assinavam as obras. “Elas estão a serviço de Deus. A noção de pessoa aparece quando a relação com a arte muda”, observa o historiador da arte Jan Blanc, autor de ‘Palavras de artistas, da Renascença a Sophie Calle’.
Essa relação com a arte muda na Renascença, com os Médici. No começo do século XV, a arte vira uma arma política a serviço das famílias patrícias que procuram criar um vínculo com os melhores artistas para encenar sua magnificência. A partir dali, não são simplesmente os materiais ou o tempo gasto que determinam o preço de uma obra mas sobretudo o talento do artista – seu ingenium, para usar a palavra do biógrafo dos artistas Giorgio Vasari: quer dizer suas qualidades inatas, e não só sua técnica. O pintor ou o escultor agora assina suas obras. “Artistas e poetas começam a ser considerar como iguais dos príncipes”, nota o historiador da arte François-René Martin. As lendas que começaram a circular o atestam: Charles Quint teria pego o pincel do Tiziano, enquanto Leonardo da Vinci teria expirado seu último sopro nos braços de François I.
Então aí está o nascimento do ego de artistas e do culto nas suas pessoas? Não tão rápido. “Eles desfrutavam dessa consideração só perto de alguns príncipes”. Nota a socióloga da arte Nathalie Heinich, autora de ‘A elite artista’ (Ed. Gallimard). Jamais a noção de “personalidade” do artista aparece. Isso seria um anacronismo. Quando Giorgio Vasari escreve ‘Vidas de Artistas’, ele não fala de características pessoais: o retrato de um artista demonstra as qualidades de sua arte. Assim, quando ele escreve que Michelangelo ama a solidão, é para significar que ele é superior a todos os outros. Bem como a rivalidade desse último com Raphael não é um conflito de pessoas, mas a vontade de cada artista de se afirmar de sua “maneira”, explica Jan Blanc.
Com Duchamp, o artista se torna indissociável de sua arte
É preciso esperar o século XIX para que a personalidade do artista seja valorizada. Com o romantismo e, mais tarde sobretudo, com o impressionismo, a pintura não é mais representação de uma exterioridade, mas a expressão de uma interioridade. Na academia real de pintura e de escultura quem ditava as regras do bom gosto desapareceu com a Revolução Francesa, e pouco a pouco, fora dos salões oficiais, surgiu uma arte que transgrediu os códigos, com artistas à margem da vida burguesa.
É nessa época que aparecem e se desenvolvem as mídias de massa. Os artistas excluídos dos circuitos oficiais as utilizam para se fazer conhecer. “É o caso do Courbet, que sabe muito bem fazer sua própria encenação. Amigo dos jornalistas, ele dissemina suas ideias nos jornais, que batem o tambor ao redor de suas telas escandalosas”, analisa o especialista das relações entre os artistas e meios de comunicação Gabriel Montua.
A partir desse ponto, os artistas afirmaram alto e forte sua personalidade. “Não somente você não terá ele por cinquenta francos, nem por seiscentos, mas se você me oferece cinquenta mil francos, você não o terá também não”, disse Claude Monet em 1879 a um admirador que tinha expresso o desejo de comprar uma tela na condição de que ele a modificasse de acordo com os seus desejos. Para emergir, é bom “saber tirar o cobertor para sim” (ou chamar os holofotes para si mesmo). Como Picasso quem, com seus jogos de olhares em frente aos fotógrafos, seu sotaque espanhol, soube fazer sua encenação. “Ele conseguiu se impor como criador do cubismo. Hoje, se dá conta que o Braque estava sem dúvida alguns passos à frente…”, notou François-René Martin.
Mas foi sem duvida com Marcel Duchamp, precursor da arte contemporânea, com seu mictório, que transformou com a sua assinatura em obra de arte, que a pessoa do artista vira indissociável da obra, e portanto que o ego dos artistas se exacerbou.
Duchamp gostava de se fantasiar de mulher, se fez raspar o crânio com um desenho em forma de estrela e se deixou fotografar assim por Man Ray. “Desde o momento que o artista torna-se singular por sua obra, sua pessoa, garantia da autenticidade do seu processo, deve também se afastar dos clichês”, observa Nathalie Heinick, autor do ‘Paradigma da arte contemporânea’ (Ed. Gallimard).
Depois da segunda guerra mundial, Andy Warhol cristaliza essa tendência indo até fazer de seu ego e do ego das estrelas o assunto da sua obra. “Mas sobretudo, com a evolução do mercado da arte e a explosão dos preços, os artistas tornam-se marcas, no sentido econômico. Warhol, com a sua gola rolê, suas perucas, suas respostas lacônicas para os jornalistas, joga com isso de forma maravilhosa”, observa Gabriel Montua. Os artistas, doravante, devem implementar estratégias para se diferenciar e se fazer imediatamente reconhecíveis. Inclusive por meios desviados, como os artistas de rua Banksy ou Space Invaders, que chamam a atenção da mídia e do mundo da arte pelo anonimato deles, ou o fotografo JR, que cobre as cidades da suas fotos e nunca aparece sem um chapéu, os olhos escondidos atrás de óculos pretos.
Salvador Dali que, como Rembrandt, nunca parou de se colocar dentro da sua pintura, conseguiu construir, ao redor do seu bigode, do seu sotaque hispânico caricatural, das suas rajadas, uma “personalidade” visível dentro das suas obras e em frente nas câmeras. “Ele usa o recurso de uma gestualidade elaborada, com as mãos, o bigode e o corpo. A aparência, a gestualidade e a linguagem participam da construção de uma persona paranóica”, sublinha Jean-Michel Bouhours no catalogo da exposição Dali no centro Pompidou no ano passado. Com a sua utilização das mídias, ele abriu porta para Andy Warhol.
—- Na segunda parte desse artigo, teremos entrevistas com a socióloga Nathalie Heinich e com o psiquianalista Thierry Delcourt discutindo sobre o assunto.
Fonte: artigo original do L’œil Magazine (Maio, 2014), traduzido do francês por Myriam ZiniRevisão Carolina Paz