Tópicos 2e1: Girolamo Marri

O artista italiano Girolamo Marri, fala sobre sua estádia na China, como o café tornou-se parte importante do seu processo criativo e sobre performance.

The Italian artist Girolamo Marri talks about his stay in China, how coffee became an important part of his creative process and about performance.

foto profile 1Girolamo Marri (Roma, 1980) é artista plástico e atualmente cursa o mestrado em Artes Visuais no Royal College of Arts London, com ênfase em escultura e performance. Formado pela Central Saint Martins College of Arts and Design, Londres, Girolamo participou de exposições na Europa e na Ásia, principalmente na China, onde residiu por um tempo.

http://www.girolamomarri.info/

 

 

1. Um artista estrangeiro em Shanghai

A vida era tão boa em Shanghai.

Deixem falar o que quiserem sobre poluição e choque cultural, eu passeava pela cidade em minha bicicleta e comprava flores e mangostão para minha casa, que tinha janelas em todos os quatro lados, paredes pêssego na sala de estar e rosa no quarto, e um armário de especiarias feito a partir de um relógio de pêndulo antigo. Meu barman preferido, que eu nunca vi sem uma gravata borboleta, fazia-me um Negroni de inverno com cravos.

Como eu não entendia nada do que as pessoas ao meu redor falavam, eu era capaz de concentrar-me em qualquer livro que eu estivesse lendo nos cafés. Eu conheci pessoas que eram tão firmes e delicadas de caráter, que a maioria dos ocidentais agora parecem suaves e rudes.

E eu tinha um estúdio com janelas largas voltadas para o sul, em uma fábrica de canetas abandonada. No edifício haviam também alguns artistas / amigos, e quando eu os visitava nós tomávamos chá verde e roíamos sementes de girassol, quando eles me visitavam, eu fazia café e enrolava um ocasional cigarro. Às vezes eu estava entediado em meu estúdio, então eu torturava meu assistente, porque sim, eu podia pagar um assistente de meio período. E eu torturei ele tanto que acabei com todo o amor que ele tinha pela arte, e agora ele está estudando administração de cassinos em Las Vegas.

Quando exibido em mostras coletivas em Shanghai, ou no resto da China, meu trabalho, que eu geralmente não definiria como surpreendentemente original, parecia as vezes o mais novo, bravo, quente demais; apresentado como era, ao lado de algum lixo paradoxalmente bem produzido. Mas em muitas outras ocasiões, eu sentia que faltava nas minhas peças a intensidade que alguns artistas chineses, mesmo muito jovens, eram capazes de infundir nas deles. Eu desenvolvi minha própria teoria sobre essa divisão, embora saiba que é uma generalização brutal e asseguro nunca confiar nela: um resíduo pegajoso de uma cultura antiga borbulha profundamente debaixo da pele de alguns artistas chineses, algo espiritual e forte que sobreviveu todo o pesadelo Maoísta e pós-Maoísta, e infundi a arte não material deles, como vídeos e performances, com grande poder. Mas ao invés disso, é a herança do gênio artesanal e mercantil, envenenado pela penetração súbita da cultura consumista em um país sedento de valores, que dá origem à maioria das obras de arte material. Especialmente quando a fibra de vidro está envolvida.

Eu era o único artista italiano em Shanghai, durante muito tempo, com exceção de alguém que fazia estátuas de cerâmica chinesa, feias, muito feias, estátuas de cerâmica com caracteres chineses impressos e que, aliás, gostava de ser chamado Maestro. Alessandro Rolandi era o único artista italiano em Beijing. Beijing e Shanghai são planetas separados; os protagonistas em uma cidade são desconhecidos na outra. Então, ocasionalmente, nós podíamos enviar pombos correio diretamente um para o outro, para reportar sobre as novidades de nossas respectivas cenas artísticas. Eu penso que pouco a pouco está melhorando, eu nunca tive muito para falar sobre Shanghai, ela era uma cidade de arte muito sonolenta para ser honesto.

Screen Shot 2014-03-10 at 2.08.05 PM

Come have your picture taken standing on a westerner
50 fotos instantâneas e folhas de contato coletadas para performance
Vídeo Documentação – 04.31
Dimensões variáveis – 85 × 50 mm (cada) 2008

VÍDEO DA PERFORMANCE

2. Café e arte

Alguns meses atrás, eu precisei parar de tomar café, ele estava me deixando muito ansioso. Bem, não era exatamente o café que estava me fazendo tão ansioso, mas Londres, para onde eu tinha me mudado, e todos os demônios assustadores que habitam lá. As incríveis ideias que as outras pessoas estavam tendo, minha abstinência sombria de sexo significativo, uma relação desequilibrada de entrada e saída artística, milhares de novos nomes para aprender e rostos para lembrar que eu não tinha certeza se gostava, medo do pior inverno de todos (que nunca veio), minhas permanentes lutas financeiras, e muitas outras coisas. Mas café era definitivamente o ingrediente secreto que fazia toda a mistura acender e pegar fogo em meu estômago, então naquela noite eu não pude fechar meus olhos e durante o dia eu estava coberto por uma espessa camada de poeira, movendo-me apenas de acordo com a ultra rápida mudança do meu humor.

Então eu parei com o café, nos primeiros dias foi um desastre ainda maior, constantemente caindo de sono, mesmo caminhando, depois eu recuperei algum tipo de forma, foco e presença.

Mas eu não posso de forma alguma desprezar o café. Embora eu tenha horror de qualquer forma de nacionalismo, e eu não sinta qualquer afiliação com alguém só porque nascemos no mesmo canto desta terra, alguns anos atrás eu vi em uma praia próxima de Roma, um jovem com uma tatuagem da Bialetti máquina de café expresso em seu ombro direito. Eu imediatamente me senti próximo dele. Dele e de todos os italianos silenciosos pela manhã, olhando para as chamas azuis de metano, esperando pelo aroma e por aquele som borbulhante, prontos para riscar as paredes viscosas dos seus estômagos com o sedutor veneno que nós trouxemos dos franceses, que por sua vez trouxeram dos turcos, que trouxeram dos árabes, que trouxeram dos etíopes, que devem isso a um pastor, que deve isso a suas cabras e seu amor por tudo.

Com o tempo eu fui imprimindo telas com café (quando eu ainda estava pintando), e eu joguei café em desenhos e fotografias, eu construí torres de máquinas de café, eu ensinei os chineses como fazer uma máquina de café de percolador e eu fiz instalações sonoras com ela. Alguns anos atrás, depois de um acidente que tive e que poderia ter me custado uma cara amizade, eu aprendi como fazer máquinas de café explodirem, e desde então eu estive brincando com esse poder destrutivo.

O café entrou na minha prática artística como a saborosa encarnação da ambígua cultura que me alimentou; uma fachada de calor Mediterrâneo e alegria de viver, leveza de espírito, sociabilidade e generosidade, atrás da qual jazem 60 milhões de pessoas e o som estridente de seus nervos destruídos; um grande circo onde os acrobatas passaram os últimos 40 anos dando piruetas em todas as direções sem parar apenas para não enfrentarem seus problemas.

Enquanto eu escrevo, eu estou tomando café, é evidente que eu não poderia ficar sem ele por muito tempo. Eu tive uma recaída um mês atrás. Café é realmente viciante, e parar de vez requer uma força de vontade que eu nunca tive e esperançosamente nunca terei.

1509915_10153735196435201_869628545_n

Nine Gentle Ghosts
Documentação em Vídeo de instalação / performance
04.12 minutos em um loop
2014

VÍDEO DA PERFORMACE

3. Performance

Diga para alguém, que não tem nada a ver com arte contemporânea, que você é um artista e você faz performance e muito provavelmente ele vai assumir que você é um dançarino contemporâneo, se esticando e dobrando por horas ao som de música eletrônica não rítmica, sem expressão no rosto, em um hangar de aviões. Ou, talvez nos dias de hoje, graças aos esforços empresariais habilmente orquestradas de alguns capitalistas recém-nascidos, uma certa ideia sobre performance realmente alcançou as massas, então algumas pessoas podem preferir imaginar o performer sentado em uma mesa, de novo por horas, olhando para eles sem mover-se e ainda com muito pouca expressão em seu rosto.

Atravesse os portões para o reino da arte dos supostamente esclarecidos, e o nível de apreciação pela performance parece não crescer muito. Na média, se os galeristas te enquadram como um artista de performance, em tempo eles irão secretamente dispensá-lo como não lucrativo e vão comprometer-se em nunca promove-lo seriamente ou ajuda-lo de qualquer forma, eles irão também convidá-lo para “fazer uma performance” na noite de abertura da próxima exposição individual de pintura deles, sem orçamento, é claro, embora eles estejam dispostos a oferecer uma gaiola de tamanho modesto e algumas bananas.

Outros artistas também desprezam a performance, porque ela não carrega o labor extremo, o sofrimento e a luta, que eles tiveram que enfrentar para encher seus estúdios de preciosidades, tangíveis, indispensáveis e belos produtos. Eles expressam sua frustração com piadas educadas como: “Ei, já que nós não temos nada para fazer durante meia hora, por que você não senta na cadeira e faz uma performance?” a qual o performer só pode responder: “Por que você não vai quebrar um biscoito ao meio e coloca-lo em um pedestal?”

Eu estou dizendo tudo isso para rir é claro, e eu estou usando um “você” genérico invés do “Eu”. Eu não me afeto tanto por qualquer opinião que as pessoas possam ter sobre o que a performance é, nem por qualquer boa definição que a performance possa ter, porque, embora eu sinceramente simpatize com aqueles escravizados, classificando e categorizando os esforços de outras pessoas, eu pessoalmente nunca me vi como um artista performático, nem como qualquer outro tipo específico de artista. Eu só vejo a mim mesmo como alguém que luta para crescer intelectual e espiritualmente, e  espalha traços materiais e não-materiais ao longo do processo. Frequentemente, eu me uso como ferramenta, assim como outras vezes eu uso objetos que eu construo ou encontro, textos, outras pessoas, suas habilidades, câmeras de vídeo, humor, relações espaciais e muito mais. Isso realmente não faz de mim mais performer do que que escultor ou cineasta, faz?

A forma como hoje em dia eu respondo as pessoas que me perguntam o que eu faço é dizer que eu faço um monte de coisas diferentes, e se a curiosidade delas não diminui, eu cito uma lista interminável  de exemplos do meu trabalho e paro somente quando eles ficam entediados ou me deixam sozinho.

*tópicos 2e1 é uma coluna sobre arte contemporânea publicada mensalmente no Blog do Ateliê Coletivo2e1. Todo mês um profissional internacional é convidado para falar livremente sobre três assuntos propostos pelo nosso editorial. Atualmente, tópicos 2e1 é coordenado por Monica Rizzolli.

.

English version

Girolamo Marri (Rome, 1980) is currently undertaking a Fine Art MA at Royal College of Arts London, in Sculpture and Performance. He holds a BA Fine Arts (First Class honours), Central Saint Martins College of Arts and Design, London, UK and attended several exhibitions in Europa and Asia, especially in China, where he lived for a time. http://www.girolamomarri.info/

1. A foreign artist in Shanghai

Life was so good in Shanghai. 

Let them say what they want about pollution and culture clash, I’d wander around town on my bicycle and buy flowers and mangosteens for my house, which had windows on all four sides, peach walls in the living room and pink in the bedroom, and a spice cupboard made from an old grandfather clock. My favorite bartender, whom I never saw without a bow tie, made me winter Negroni cocktails with cloves.

As I could understand nothing of what people around me were saying, I was able to concentrate on any book I was reading in cafes. I met people who were so firm and delicate in character, that most westerners now feel soft and rude. 

And I had a studio with large windows facing south, in a disused pen factory. In the building there were also a few other artists / friends, and when I visited them we’d drink green tea and nibble on sunflower seeds, when they visited me, I’d make coffee and roll the occasional joint. Sometimes I was bored in my studio so I tortured my assistant, ‘cause yes, I could afford hiring a part time assistant. And I tortured him so much that I sucked the love for art out of him, and now he’s studying casino management in Las Vegas. 

When shown in group exhibitions in Shanghai, or in the rest of China, my work, which I wouldn’t generally define as astonishingly original, would at times seem like the newest, grittiest thing, too hot to handle; displayed as it was next to some paradoxically well produced junk. But in many other occasions, I felt my pieces were lacking the intensity that some Chinese artists, even very young, were able to infuse in theirs. I developed my own theory with regards to this divide, though I’m aware it’s a brutal generalization and I make sure never to rely on it: a sticky residue of ancient culture bubbles deep under the skin of some Chinese artists, something spiritual and strong that survived all the Maoist and post-Maoist nightmare, and infuses their non-material art, such as videos and performances, with great power. Instead it is the inheritance of craftsmanship and mercantile genius, poisoned by the sudden penetration of consumerist culture in a country thirsty for values, that gives birth to most object based art works. Especially when fiberglass is involved.

I was the only Italian artist in Shanghai, for a long time, with the exception of someone who made ugly,very ugly, ceramic statues with Chinese characters printed on them and  who, incidentally, liked to be called Maestro. Alessandro Rolandi was the only Italian artist in Beijing. Beijing and Shanghai are separate planets; the key players in one city are nobodies in the other. So, occasionally, we would direct messenger pigeons to each other, to report on news from our respective art scenes. Though it’s getting better little by little, I never had that much to report from Shanghai, it was a pretty sleepy art town to be honest. 

2. Coffee and art

Some four months ago I had to stop drinking coffee, it was making me too anxious. Well, it wasn’t actually coffee that was making me too anxious, but London where I had relocated, and all the spooky demons that inhabit it. The far too many good ideas other people were having, my morose abstinence from meaningful sex, an unbalanced ratio of artistic input and output, a thousand new names to learn and stick to faces I wasn’t sure I liked, fear of the coldest winter ever (which never actually came), my permanent financial struggles, and many others. But coffee was definitely the secret ingredient that made all that concoction spark and fire up in my belly, so that at night I could not close either of my eyes and in the day I was covered by a thick layer of dust, moving only according to the ultra-rapid swinging of my mood. 

So I quit coffee and, though for the first few days I was even more of a disaster, constantly on the verge of falling asleep even while walking, afterwards I recovered some sort of decent shape, focus and presence.

But I can’t be in any way dismissive about coffee. Though I am appalled by all forms of nationalism, and I don’t feel any affiliation with anyone just for being born on the same corner of this earth, a few years ago I saw on a beach not far from Rome, a guy with a tattoo of a Bialetti espresso machine on his right shoulder blade. I felt instantly close to him. To him and to all those Italians silent in the morning, staring at the methane blue flames, waiting for that aroma and that bubbly sound, ready to scratch the slimy walls of their empty stomach with that seductive poison we got from the French, who in turn got it from the Turks, who got it from the Arabs, who got it from the Ethiopians, who owe it to a shepherd, who owes it to his goats and their love for everything.

Over time I have been priming canvases with coffee (when I was still painting), and I threw it on drawings and photographs, I built towers of coffee machines, I taught the Chinese how to make it with percolators and I made sound installations with it. A couple of years ago, after an accident that I had and which could have costed me a dear friendship, I learned how to make coffee machines explode, and since then I’ve been playing around with this destructive power.

Coffee enters my practice as the tasty incarnation of the ambiguous culture that nurtured me; a facade of Mediterranean warmth and joie de vivre, of light hearted physicality, sociality and generosity, behind which lie 60 million people and the screechy sound of their wrecked nerves; a huge circus tent under which the acrobats have spent the last 40 years non stop pirouetting in all directions solely not to face their problems. 

As I write this I’m drinking coffee, it goes without saying that I couldn’t do without it for long. I fell off the wagon about a month ago. Coffee is really quite addictive, and getting properly rid of it would take an amount of will power that I have never possessed and hopefully never will.

3. Performance

Tell someone who’s got nothing to do with contemporary art that you’re an artist and you do performances and most likely they will assume you are a contemporary dancer, stretching and bending for hours to non-rhythmical electronic music, with no expression on your face, in an airplane hangar. Or maybe these days, thanks to the cleverly orchestrated entrepreneurial efforts of a few newborn capitalists, a certain idea of performance art has actually reached the masses, so many would rather picture you sitting at a table, again for hours, staring at them without moving and still with very little expression on your face.

Pass the gates into the realm of the supposedly enlightened art world, and the level of appreciation for performance art doesn’t seem to go much higher. On average, if gallerists frame you as a performance artist, while they will secretly dismiss you as non-profitable and pledge to never seriously promote or help you in any way, they’ll also cheerfully invite you to “do a performance” on the opening night of their next painting show, with no budget of course, though they’ll provide a modestly sized cage and a few bananas. 

Other artists too despise performance art, because it does not convey any of the toil, the suffering and the struggle, they had to endure instead in order to fill their studios with precious, tangible, indispensable, cute products. They vent their frustration through polite jokes such as “Hey, since we have nothing to do for half an hour, why don’t you stand on that chair and do a performance?” to which you the performer can only reply “Why don’t you go break a biscuit in two and put it on a plinth?”

I’m listing all the above for a laugh really, and I’m deliberately using a generic “you” rather than “I”. I’m not that touched by whatever people’s opinion of performance is, neither by what a good definition of performance might actually be, because, though I sincerely sympathize with those who are enslaved to classifying and categorizing other people’s endeavors, I personally never saw myself as a performance artist, nor as any other specific kind of artist. I only see myself as someone who struggles to grow intellectually and spiritually, and scatters around material and non-material traces throughout the process. Often I employ myself as a tool, just as other times I use objects I make or find, texts, other people, their skills, video cameras, humor, spatial relations and plenty more. This doesn’t really make me a performer any more than it makes me a sculptor or a filmmaker, does it?

The way these days I reply to people asking me what I do is to tell them I do a lot of different stuff, and if their curiosity doesn’t subside then, I pull out an endless list of examples of my works and stop only when they‘ve got bored and left me alone.

*tópicos 2e1 is a column on contemporary art published monthly in the Ateliê Coletivo2e1′s Blog. Every month an international professional is invited to speak freely about three topics proposed by our editorial. Currently, tópicos 2e1 is coordinated by Monica Rizzolli.

Comments are closed.