O dilema do artista – Mark Rothko

Tradução: Juvêncio Vilhena
Fonte: “The Artist’s Reality – Philosophies of Art”
2014-10-06-markrothko

Qual a concepção popular sobre o artista? Reúna milhares de descrições, e o resultado dessa composição é o retrato de um idiota: ele é considerado infantil, irresponsável e ignorante ou incapaz em relação às questões cotidianas.

Essa imagem não envolve, necessariamente, censura ou indelicadeza. Essas deficiências são atribuídas à intensidade da preocupação do artista com seu tipo particular de fantasia e à própria natureza etérea do que é fantástico. A tolerância divertida que se tem com o professor distraído é extensiva aos artistas. Os biógrafos contrastam a precariedade de seus julgamentos com a intensa dedicação à sua arte; e, enquanto sua ingenuidade ou canalhice são motivo de comentários por uns, por outros são vistos como sinais de Simplicidade e Inspiração, matérias-primas da arte. Quando o artista não é articulado e não está atualizado com os fatos do seu tempo, entendem que a natureza se mobilizou para distanciá-lo de todas as distrações para que ele pudesse se concentrar exclusivamente em seu ofício.

Esse mito, como todos, tem certo fundamento. A princípio, ele atesta a crença comum quanto às leis da compensação: que um sentido ganha maior sensibilidade com a deficiência de outro. Homer era cego, e Beethoven surdo; muito ruim para eles, mas uma dádiva para nós em relação ao incremento que isso contribuiu para a intensidade de sua arte. O mais importante é que isso atesta a persistência da crença nas qualidades irracionais da inspiração, localizando entre a inocência da infância e o distúrbio da loucura o verdadeiro insight, que não é atributo do homem comum. Quando se trata do artista, o mundo ainda adere à visão platônica do artista, manifestada em Íon em referência ao poeta: “Não há criação nele até que esteja inspirado, fique fora de si e que sua consciência se ausente.” Embora a ciência, com seus instrumentos, trate de desvendar os mistérios da imaginação, a persistência do mito é uma inadvertida homenagem que o homem presta para a manifestação do seu ser interior como algo diferenciado da sua experiência no mundo real.

É estranho, mas o artista nunca reagiu ao fato de lhe serem negadas aquelas estimadas virtudes que outros homens não viveriam sem: intelectualidade, julgamento equilibrado, conhecimento do mundo e conduta racional. Pode-se dizer que ele até reforça o mito. Em seu diário, Vollard nos conta que Degas fingia surdez para escapar de discussões e embates relacionados a questões que ele julgava desagradáveis. Ao mudar o interlocutor ou o tema, sua audição automaticamente melhorava. Podemos nos maravilhar com sua sabedoria, mas ele apenas manifestou aquilo que estamos cansados de saber hoje em dia: que a constante repetição da mentira é mais convincente que a demonstração da verdade. É compreensível, então, que o artista deva, realmente, cultivar a aparência de um idiota, a surdez, a falta de articulação, num esforço para afastar milhões de irrelevâncias que diariamente se acumulam em relação ao seu trabalho. Enquanto a autoridade de um médico ou de um encanador jamais é questionada, todos se consideram aptos ao julgamento quanto ao que uma obra de arte deveria ser e como deveria ser criada.

Não vamos nos iludir com visões de uma era dourada livre dessa cacofonia. Essa aparência é uma falsidade artística. Nós lidamos com a fantasia e sabemos como os sonhos podem parecer reais. No tempo em que vivemos, que demanda encarar a realidade com clareza, não nos é permitido o prazer delirante do entorpecimento. Com o conhecimento de que as atribulações humanas estão sempre a rondar, podemos dizer com segurança que o artista do passado também teve boas razões para bancar o tolo, e, assim, proteger os momentos de quietude, quando os chamados dos demônios podem ser silenciados e a arte perseguida. E, se a natureza contribui para atribuir-lhe a aparência de um tolo, melhor ainda. A dissimulação é uma arte precisa.

“…Ele escolheu o papel de quem busca agradar
O mundo indigno, – …ele escolheu seu papel,
Para sempre deverá manter o olhar de calmaria
Quando a aflição estiver em seu coração

E, sempre, nos momentos dos sentimentos mais felizes,
Com a tristeza deve seu entusiasmo ser contido
E, dissimulando sempre seus melhores pensamentos,
Deve estupidamente brandir sua exaltação

E com a língua mentirosa,
Assentir com os erros da multidão.”

Esse lamento é de Michelangelo (A vida de Michel Angelo Buonarroti- 1807). Até esse grande homem, que viveu em uma época em que a relação do artista com o mundo parecia ideal e festas e procissões comemoravam a realização de uma obra de arte pelos artistas de renome, aqueles cujos serviços eram disputados por duques, papas e reis, até ele era atormentado com calúnias e desaprovações. Os princípios de sua arte eram constantemente questionados e, ao confrontar seus críticos, sua moral era questionada. Arentino atacou a nudez no “Último julgamento”, pontuando que era inconsistente com os princípios cristãos. A razoabilidade da percepção de Arentino não pode ser negada. A visão de Michelangelo sobre a corte celestial pode ser facilmente confundida com um momento de orgia. Esses doutores e moralistas estão sempre certos. Como nossos próprios moralistas e críticos da sociedade. Os fatos que apresentam são tão exatos e sua argumentação tão bonita: mas que desastrosa falsidade para a causa da verdade.

A maior parte das sociedades do passado insistiu em que seus valores em relação à moral e à verdade fossem retratados pelos artistas. Os artistas egípcios tinham que produzir dentro de um protótipo cuja prescrição era específica e impositiva; os artistas cristãos tinham que seguir os ditames do II Concílio de Niceia ou, como o monge da era iconoclasta, trabalhar em perigo e em segredo. Os nus de Michelangelo foram forçados a vestir as roupas e drapeados. As autoridades formulavam as regras e os artistas as cumpriam. Não vamos tratar aqui daqueles artistas cuja ousadia de tempos em tempos revitalizou a arte, resguardando-a do seu próprio narcisismo. Podemos dizer com precisão que, entre esses períodos, o artista teve que se submeter às regras ou simular a aparência de submissão para que lhe fosse permitido praticar sua arte.

Pode-se levantar a questão de que a sina do artista é a mesma hoje em dia, que o mercado, negando ou proporcionando os meios de sustento do artista, manifesta a mesma coação. Mas há uma diferença crucial: as civilizações citadas anteriormente tiveram o tempo e a poder espiritual para impor suas demandas. O fogo do inferno, o exílio e o castigo físico eram os instrumento de correição, caso falhasse a persuasão. Hoje, o instrumento de imposição é a fome, mas a experiência dos últimos quatrocentos anos tem mostrado que essa fome não é tão determinante como a promessa da iminência do inferno e da morte. Desde o fim dos padrões temporais e espirituais, a história da arte é a história dos homens que, em sua maioria, preferiram a fome à submissão e que julgaram fazer uma escolha vantajosa. Sim uma escolha, a despeito da disparidade das alternativas.

A liberdade para morrer de fome. Irônico, realmente. Mas contenha sua gargalhada. Não subestime o privilégio. Raramente alcançado, e conquistado a um preço alto. A negação desse direito não é menos irônica: pense no condenado à morte que se recusa a comer e é alimentado compulsoriamente, se preciso for, até o dia de sua execução. Quando se trata de fome e de arte, a sociedade tem se mostrado bastante dogmática. O indivíduo deve sentir fome por motivos legítimos como o desemprego e a exploração ou não senti-la em definitivo. O indivíduo não pode inventar sua própria fome, assim como não pode dispor de sua própria vida. Dizer que prefere sucumbir a negociar com as ninharias e interesses da sociedade seria uma heresia punida severamente. No âmbito dos dogmas dos estados totalitários de hoje, você pode ter certeza, o artista tem que morrer de inanição corretamente, assim como deve pintar de acordo com os ditames do Estado.

Mas, hoje em dia, nós ainda temos o direito de escolha. É, precisamente, nessa possibilidade de exercitar essa escolha que se encontra a diferença entre a nossa sina e a dos artistas do passado. Escolher implica a responsabilidade de uma consciência e, na consciência do artista, a Verdade da Arte é o principal. Pode haver outros determinantes, mas, para o artista, a não ser que ele seja impedido ou desviado de seu caminho, serão de caráter secundário e descartados do seu processo de criação. Essa consciência artística, que é formada pelas razões do presente e pela memória, pela moralidade intrínseca à lógica genérica da arte, é inescapável. Viole seus princípios e ela vai explorar os meandros mais profundos dos pensamentos e conjecturas. Nem sofismas ou racionalizações poderão controlar suas demandas.

O que os artistas do passado fizeram de sua consciência? As leis da autoridade têm sua própria salvação: elas podem ser contornadas. Alguém pode postar uma carta e igualmente violar seu espírito. Alguém estrutura a necessidade e, então, se prontifica a vencê-la. Foi-nos dito que houve um tempo em que a verdade da lei coincidia com a verdade da arte, mas quando a divergência ganha dimensão, o artista dissimula uma para ter a aparência da outra. Quanta malícia e sagacidade nesse aparente idiota. Alguém tem de evocar o grande Apolo. Quão facilmente essa divindade helenística, com todos os seus drapeados e armadilhas, foi introduzida nos nichos dos santos cristãos. Bastou mudar o seu nome e aparentar uma tristeza maior do que a que realmente sentia.

O que instigou o artista a estabelecer esse jogo foi a unidade dogmática da civilização à qual pertencia. Todas as sociedades dogmáticas têm essa característica em comum: elas sabem o que querem. A despeito dos movimentos de bastidores, à sociedade é permitido considerar apenas uma única verdade oficial. As demandas sobre os artistas provêm de uma única fonte e as determinações em relação à arte são específicas e inconfundíveis. Isso, ao menos, é alguma coisa: seja a simulação ou a submissão a intenção do artista, um chefe é melhor do que dez, e é melhor saber o tamanho e a forma da mão que segura o chicote. Num chefe, clareza e estabilidade são preferíveis ao capricho.

Hoje, ao invés de uma voz, temos dúzias proferindo questionamentos. Não há mais uma verdade, uma única autoridade, ao contrário, há uma infinidade de candidatos ao lugar da autoridade. Todos estão cheios de estatísticas, histórias, provas, demonstrações, fatos e cotações. Primeiro eles pedem e exortam e, finalmente, partem para a intimidação através de ameaças e imprecações morais. Cada um empurra o artista para esse ou aquele lugar, dizendo o que ele deve fazer para alimentar seu estômago e salvar sua alma.

Para o artista, agora, não pode haver submissão ou escape. É a desgraça da livre consciência, que ela não possa desprezar os meios para o alcance dos fins. Ironicamente, a submissão não vai ajudar, ainda que o artista resolva subverter essa consciência, onde encontraria paz nessa Babel? Atender a uns é desagradar a outros. E que segurança pode depositar em qualquer um desses agentes?

Os dogmas da Índia, Egito, Grécia persistiram por séculos. Em se tratando de arte, a sociedade resolveu substituir o gosto pela verdade, que julga mais uma diversão do que uma responsabilidade, e muda seus gostos com a frequência com que muda seus chapéus e sapatos. E aqui deve o artista, colocado entre a escolha e a diversidade, manifestar suas lamentações em alto e bom som. Jamais seus algozes tiveram tantas formas e tantas vozes e trataram de tantos assuntos.

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