A arte triunfa sobre o comércio? – Parte 5

Apesar dos aspectos dramáticos da vida de Caravaggio, encontramos abordagens semelhantes para a pintura na obra de outros artistas. Velasquez, por exemplo, também trabalhou com temas de “gênero”, exibindo seu talento virtuoso na descrição de assuntos comuns, pessoas pobres e objetos do cotidiano, como visto em “Vendedor de Água de Sevilha” (cerca de 1619) em que é representado diferentes tipos de reflexões sobre um jarro de cerâmica, um recipiente de água vidrada e um vidro transparente.

O maneirismo cavalheirístico de Velasquez é estendido livremente aos seus compatriotas, grandes e pequenos. Eles são cada um deles uma representação simbólica de “humanidade”, algo que é atribuído e transmitido a eles através da distância formal do realismo político. Assim como na vida real, a figura em primeiro plano não é só um homem, mas também uma representação de um homem. O poder de controle do espectador é uma fantasia política que faz parte da construção de uma posição de visualização intimista e individualizada.

Na época barroca, esta característica da humanidade poderia ser atribuída à todos os seres humanos, independentemente da sua raça, sexo ou status social. O fato disso normalmente não ter ocorrido não altera o novo potencial da representação simbólica da universalidade introduzida na sociedade. Um conjunto semelhante de questões é encontrado em  “O Alegre Bebedor” de Frans Hals. Um homem comum em uma taverna convida você, o espectador, para uma bebida. Ele é um companheiro valoroso, mas ao contrário de você, ele não é um parlamentar. Ele é um monarquista, um anti-burguês associado à Casa dos Orange. No entanto, você tem uma mentalidade mais cívica e humanística. Sua atitude parlamentar liberal é tolerante.

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Certamente esta é uma imagem muito menos dramática do que a de “Davi Com a Cabeça de Golias”. Mas o que elas têm em comum? Podemos perguntar desta pintura a mesma pergunta feita para a anterior: A arte triunfa sobre o comércio? Ou será que a questão à respeito da humanidade triunfa sobre o comércio? A definição da arte de Schama é um substituto para uma definição política da humanidade? Traduzido em termos de liberalismo político, os prazeres da partilha de uma bebida triunfam sobre os de contestação política? Não há agressão crua, física no trabalho de Hals. Em vez disso, a violência política é subordinada na moralidade do ponto de vista superior, apoiado por uma educação liberal e do poder da alta burguesia.

Em alguns aspectos, a apresentação de Schama sobre Caravaggio nos pede para compararmos a Contra-Reforma, um período de propaganda da Igreja e realismo político, e nosso período em que o neoliberalismo tem desafiado os valores da democracia social e do liberalismo político. Eu seria tentado a tomar esta posição de superioridade moral, me aliando com Schama contra figuras como Bush, Rumsfeld e Cheney, se não fosse o fato de que ,na minha opinião, o liberalismo moderado e tolerante do Schama é parte da mesma ideologia política das versões mais autoritárias de política liberal que testemunhamos nas últimas décadas. Como, então, poderíamos especificar a abordagem humanista liberal à pergunta: ‘A arte triunfa sobre o comércio?’ Gostaria de sugerir que comecemos analisando o contexto da produção e divulgação da série televisiva de Schama: a indústria cultural.

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O conceito de indústrias culturais foi primeiramente proposto pelos teóricos Max Horkheimer e Theodor Adorno da Escola de Frankfurt em 1944. Embora este termo é rotineiramente dispensado na teoria cultural contemporânea como pessimista e derrotista, é mantido aqui como um termo descritivo para a articulação política e ideológica das relações de produção dentro de instituições culturais e lugares de apropriação do trabalho criativo, em que os trabalhadores e os consumidores são definidos explicitamente como unidades de capital.

Na obra de Adorno, a indústria cultural é o ponto de contato entre dois domínios mutuamente exclusivos: a alta arte e a cultura de consumo. A função das indústrias da cultura capitalista está amarrada à função integradora do desenvolvimento capitalista em geral. O que faz a cultura industrial efetiva nesse processo é a organização do tempo livre e da vida cotidiana de acordo com os ciclos de produção capitalistas e a organização da cultura como entretenimento – em si um mecanismo de compensação para o prolongamento e alargamento das condições de trabalho. Alta arte autônoma, como uma esfera de produção restrita, dá à cultura de massa comercialmente acessível a aparência de universalidade. A questão historicamente específica com que Adorno estava preocupado, no período pós-Segunda Guerra Mundial foi se a sociedade poderia chegar ou não à fase da democracia social, ignorando o fascismo pequeno-burguês. As condições que testemunhou nos anos 1930 e 40, apontaram claramente para a integração negativa da sociedade.

Uma grande mudança que nos confronta desde a época de Adorno é a mudança do Estado de bem-estar social pré-guerra e pós-guerra, a era do capitalismo industrial, as formas de análise que estão associados com pós-Fordista ou pós-moderno capitalismo de consumo. O neoliberalismo tem provado ser uma forma muito mais imprudente de aventureirismo capitalista do que o reformismo Keynesiano do pós-guerra, resultando em menor crescimento econômico em todos os setores da economia global e uma maior concentração de capital excedente nas mãos de poucos. É inquestionável de que somos hoje testemunhas de algumas das formas mais autoritárias da ideologia liberal conhecidas até hoje e da restauração do poder de classes. No entanto, a maioria dos trabalhadores culturais estão se acomodando a mercantilização do conhecimento e do silenciamento do pensamento crítico, em particular, na forma de análise de classe. O capitalismo liberal reconhece em si como um sistema injusto: isso é, por definição, o custo da liberdade. Qual é, portanto, está em jogo na institucionalização da cultura contemporânea é o processo pelo qual as classes sociais que controlam o governo vieram implicitamente a compreender as contradições da arte. Sob um ponto de vista liberal, para dizer que a arte triunfa sobre o comércio, é essencialmente a mesma coisa que dizer que o comércio triunfa sobre a arte. Dizê-lo em uma série de televisão e através do tipo de engenharia cultural comercializável que o neoliberalismo incentiva, é redundante.

(continua)

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