O que é ativismo curatorial?

Por Maura Reilly publicado originalmente em inglês em http://www.artnews.com
Tradução Vitor Sugimoto

Ao centro: esculturas de Huma Bhabha. Ao lado: pinturas de Ellen Gallagher. Atrás: pintura de Emily Kame Kngwarreye. 56º Bienal de Veneza, “All the World’s Futures”, curada por Okwui Enwezor.

“Ativismo Curatorial” é um termo que eu uso para designar a prática de organizar exposições de arte com o objetivo principal de mostrar que algumas eleições de artistas não são setorizadas ou excluídas da grande narrativa da arte. É uma prática que se compromete com iniciativas contra-hegemônicas que dão voz àqueles que historicamente foram silenciados ou omitidos completamente – e também foca exclusivamente em trabalhos produzidos por artistas mulheres, artistas negros, artistas não-europeus-americanos e artistas queer. A tese do meu próximo livro, “Curatorial Activism: towards an ethics of curating”, tem como hipótese que o sistema da arte – sua história, instituições, mercado, imprensa, e assim por diante – é hegemônico ao privilegiar a criatividade de homens brancos e excluir todos os outros artistas. Também insiste que o ponto de vista do homem ocidental branco, que tem sido inconscientemente aceito como ponto de vista central, “pode – e também – prova ser inadequado não só no campo da moral e da ética, porque é elitista, mas também no campo intelectual.”

Existem vários “ativistas curatoriais” espalhados pelo mundo que estão trabalhando o tema da discriminação. Jean Hubert Martin, Okwui Enwezor, Rosa Martinez, Jonathan Katz, Camille Morineau, Michiko Kasahara, Paweł Leszkowicz, Juan Vicente Aliaga, Connie Butler, Simon Njami, Amelia Jones, entre outros, têm e estão trabalhando para que os não-representados, os silenciados e/ou colonizados não sejam mais ignorados. Cada um deles tem dedicado suas tentativas curatoriais quase que exclusivamente para a cultura visual das periferias – artistas não-brancos, não-europeu-americano, mulheres, feministas e artistas queer. Esses curadores comprometem-se a iniciativas rebeldes que estão nivelando hierarquias, desafiando pressupostos, contrariando apagamentos, dando visibilidade às periferias e minorias, bem como posicionando uma curadoria como estratégia de resistência: provocando debates inteligentes, disseminando novos conhecimentos que, por fim, ofereçam sinais de esperança e afirmação. Esses curadores têm se interessado pelas injustiças no mundo da arte e estão organizando projetos curatoriais que vão desde bienais e retrospectivas até exposições de larga escala, focando em materiais históricos e contemporâneos. Eles também questionam cânones históricos ao acrescentar, por exemplo, artistas mulheres e LGBTs, em uma narrativa que as deixavam de fora simplesmente por causa de seu sexo e sua sexualidade. Também existem curadores que estão organizando grandes exposições monográficas de artistas que foram historicamente desconsiderados, enquanto outros continuam curando exposições sobre temas contemporâneos e modernos que abrangem vasta gama de vozes, e não apenas alguns selecionados, além de produzirem críticas a respeito dos cânones.

Para que ofereçamos uma representação artística global mais justa, curadores mainstream (não-ativistas) precisam reavaliar e reescrever a sua definição de “relevância” para incluir não-brancos, não-ocidentais, não-privilegiados e mulheres.

Não é uma prática de curadoria de Affirmative Action (Ação de Afirmação) mas sim uma “curadoria inteligente”. É uma prática enraizada na ética e, sendo assim, as exposições funcionam como curadorias que se propõem a corrigir a exclusão de outros artistas das grandes narrativas da história da arte e das cenas contemporâneas. As exposições desses curadores – Magiciens de la terre, Documenta 11, The Decade Show, Century City, Sexual Politics, Hide/Seek, En Todas Partes (Everywhere), Ars Homo Erotica, Global Feminisms, Africa Remix, Women Artists: 1550–1950, Sexual Politics, Extended Sensibilities, Witnesses, In a Different Light, Queer British Art: 1867-1967 – têm ajudado a mudar radicalmente o curso da história da arte para melhor. Não há dúvidas que a maioria dessas exposições foram controversas, pois projetos que combatem a hegemonia são raramente compreendidos.

O lançamento deste livro é a celebração destes e de outros projetos de curadoria ativista que têm demonstrado que uma nova metodologia é possível. Mas é também um manifesto pela mudança no mundo da arte: demanda uma resistência ao machismo, confronta o privilégio branco e o centrismo ocidental e desafia o privilégio hétero, a fobia lésbica e insiste que uma emergência moral no mundo da arte certamente existe há algum tempo. Enquanto esses “Outros” artistas têm progredido desde 1970, as estatísticas permanecem um pouco sombrias. A discriminação mostrada a público precisa ser enfrentada e eu acredito que nós temos uma responsabilidade ética de encarar esse problema. Existe uma urgência de releitura das práticas curatoriais, em particular as de mainstream (não ativista). A maioria dos curadores hoje não parecem estar preocupados com a igualdade na representação e diversidade das vozes. Também não parecem reconhecer que o machismo, o racismo e a opressão no mundo da arte existam, desempenhando um papel crítico nesse “sistema apartheid centralizado”, como lembra Gerardo Mosquera.

Se você não acredita que o mundo da arte é machista e racista, está na hora de sair da toca. Estatísticas atuais demonstram que a luta por igualdade no mundo da arte está longe do fim. Apesar de décadas de teorias e ativismo feminista, antirracista e queer, o mundo da arte continua a excluir os “Outros” artistas – mulheres, não-brancos e LGBTQ. Essa discriminação está presente em todos os aspectos do mundo da arte, desde representações em galerias, diferenças nos valores de leilão até a cobertura da imprensa na inclusão de coleções permanentes e programas de exposição individual. Existiu, por exemplo, uma infeliz representação de artistas mulheres e não-brancos na reabertura da Tate Modern em Londres em 2016. Dos trezentos artistas representados na recolocação da coleção permanente, menos de um terço eram mulheres e menos ainda eram não-brancos. Na galeria de exposição permanente do Centro Pompidou, que exibe arte desde 1900 até o presente, menos de 10% das obras são de artistas mulheres e menos ainda de artistas não-brancos. A situação é ainda pior no Metropolitan onde atualmente menos de 4% dos artistas da seção de Arte Moderna são mulheres e nenhum artista não-branco.

Exposições blockbuster também estão sujeitas a níveis chocantes de discriminação. A quebra da questão de gênero e raça na Bienal de Veneza é um caso em questão. Na edição de 2017, “Viva Arte Viva”, curada por Christine Macel, artistas mulheres totalizaram apenas 35% dos participantes. Artistas europeus e norte-americanos dominaram a edição de 2017 totalizando 61% dos participantes. A demografia racial do evento foi particularmente triste, especialmente dado ao alcance da voz ativista de grupos como Black Lives Matter: apenas 5 de 120 artistas eram Afro-Americanos  e apenas uma de todos os artistas (Senga Nengudi) era mulher. Ao meu ver, nenhum crítico tomou nota desta disparidade nojenta. Em 2014, entretanto, críticos denominaram a bienal do Whitney de racista e machista com protestos nas galerias do museu organizados por um grupo de artistas auto proclamados “cliterati” a respeito da falta de artistas mulheres na exposição: de 103 artistas, apenas 37 eram mulheres. O coletivo de arte Yams retirou seu trabalho da bienal repudiando a falta de artistas negros e mulheres e a inclusão da artista ficcional Afro-Americana Donelle Woolford. Apesar dessa crítica à bienal de 2014, o Museu Whitney de Arte Americana inaugurou-se em um novo endereço em Nova York, no ano de 2015, com uma exposição chamada “America is Hard to See”, exibindo trabalhos da sua coleção permanente e abrangendo o período do século 1920 até o presente com trabalhos em que 69% eram homens e 77% eram brancos, o que, na minha opinião, contribui para uma curadoria mal praticada.

… a mudança de 2004 para 2016 demonstra que, se curadores estão ativamente perseguindo o problema, então a mudança é possível mesmo em uma instituição como o MoMA…

Estes não são erros do passado, caros amigos. Isto acontece agora. Nós estamos vivendo e trabalhando em um mundo da arte que não se importa com racismo e machismo, um mundo que parece datar de antes dos movimentos de direitos das mulheres e LGBTQ. Ao escrever para o Time Out London em Agosto de2016, o editor de arte Eddy Frankel declarou: “quase todas as grandes exposições de arte neste outono em Londres são de homens, e isto é rídiculo”. Depois de alegar  essa temporada de arte como “festa da salsicha”, ele requisitou formalmente que museus e galerias reconhecessem que eles “coletivamente ignoraram completamente artistas mulheres na temporada” e que deveriam se sentir “seriamente envergonhados”. O que ele falhou em colocar foi que, das 14 grandes exposições que ocorreram em Londres, apenas uma foi de um artista negro, Wilfredo Lam.

Porque curadores mainstream continuam perpetuando essa injustiça? Curadores têm se tornado arrogantes e pedir para incluir artistas não-brancos e/ou artistas mulheres afrontaria seus egos? Eles veem seus temas curatoriais bíblicos/fechados como brilhantes e portanto não conseguem permitir que “Outros” artistas sejam incluídos? Hoje a voz do curador se tornou divina? Eles são muito marqueteiros? Eles estão estudando em programas curatoriais que não oferecem um currículo inclusivo (por exemplo cursos em arte feminista; pós-colonialismo; teoria crítica racial)? Se um curador simplesmente não se importa com os “Outros” artistas, seria falta de hábito, misoginia, racismo, homofobia ou apenas preguiça? Eles estão escolhendo obras que veem nas galerias de Nova York ou casas dos colecionadores, ao invés de viajar para lugares fora do contexto ocidental na busca de trabalhos e artistas não familiares? Esses curadores mainstream pressupõem que a melhora das parcelas de participação de artistas mulheres e não-brancos mostra que a igualdade foi alcançada? A existência de algumas superestrelas ou representantes levaram eles a pensar que os Outros artistas foram totalmente integrados num discurso aberto e que portanto a igualdade não seria mais um problema? Como lutamos contra essa dissonância cognitiva – ou, ouso a dizer, ignorância?

Seja qual for a razão, curadores mainstream que propagam práticas discriminatórias precisam ser denunciados de alguma forma, e a curadoria malconduzida tem que ser criticada até o ponto em que se torne inaceitável, por exemplo, mostrar apenas 26% de mulheres artistas – como no caso da Bienal de Veneza em 2013, curada por Massimiliano Gioni. Nenhum crítico mostrou a disparidade de representação. Estatísticas sobre raça e gênero nas exposições têm que ser disseminadas e curadorias mal praticadas discutidas a público. Essa situação é deplorável e críticos de arte precisam se manifestar; se não, não estariam eles secretamente trabalhando junto à discriminação?

O que precisamos é de mais transparência e mais educação: se não pudermos ajudar outros a verem esse problema estrutural/sistêmico, então não poderemos nem começar a consertar. Precisamos fazer com que as estatísticas se tornem públicas o mais rapidamente, para que os dados empíricos não possam ser apagados ou negados. Em outras palavras, como podemos fazer com que os curadores mainstream (não ativistas) reflitam sobre gênero, raça e sexualidade, para entender que estes são problemas que precisam de resolução? Como podemos fazer com que eles reconheçam e aceitem que existe uma semente da desigualdade profundamente plantada e que necessita ser combatida? Como podemos promover empatia para a ação?

Para que ofereçamos uma representação artística global mais justa, curadores mainstream (não-ativistas) precisam reavaliar e reescrever a sua definição de “relevância” para incluir não-brancos, não-ocidentais, não-privilegiados e mulheres. Em um mundo da arte que permanece do modo que Judith Wilson chamou de “um dos últimos bastiões da supremacia branca”, a maioria dos curadores mainstream tendem a reproduzir um mundo da arte branco, oferecendo pouco serviço de inclusão racial. Mas, como Maurice Berger explorou em seu artigo “Are Art Museums Racist?”: “Até que os brancos, que agora detém o poder no mundo da arte, analisem a fundo seus motivos e atitudes em relação aos negros, o racismo não poderá ser desprendido”. Curadores mainstream hoje devem desprender tanto o racismo quanto o machismo.

… é o momento de curadores trabalharem juntos para reconhecer o problema e encontrar uma solução para que diferentes pessoas e suas criações tenham a oportunidade de aparecer de forma igual.

Curadores (e outros profissionais do mundo da arte) devem estar acessíveis à auto-crítica. Do modo que a crítica social Bell Hooks coloca, nós devemos “produzir trabalhos que se opõem à estruturas de dominação, que apresentem possibilidades de transformar o futuro ao interrogar nosso próprio trabalho no campo estético ou político. Esse interrogatório se torna uma intervenção crítica que promove uma atitude de vigilância e não de negação”. Em outras palavras, aprender a escutar o outro não é o bastante; devemos primeiramente escutar a nós mesmos. Dessa maneira, curadores podem começar a perguntar a si mesmos: qual a minha tendência? Estou excluindo uma grande parcela de pessoas nas minhas curadorias? Tenho favorecido artistas homens e brancos e porque tenho feito isso?

Não é difícil mudar a checklist de alguém – ou produzir uma exposição com uma diversidade de vozes ao invés de um monólogo rotineiro. Tomemos a bienal do Whitney em 2017 como exemplo: 28 dos 63 artistas na exposição foram mulheres, alguns participantes eram queers e teve uma porcentagem igual de artistas brancos e não-brancos. Isso não foi difícil, ou foi? Parabéns aos co-curadores Christopher Y. Lew e Mia Locks. Ainda posso usar como exemplo as galerias do MoMA que exibem arte de 1880 a 1970: em 2004, apenas 4% dos artistas expostos eram mulheres e menos ainda artistas não-brancos, enquanto que em 2016, 21% das obras eram de mulheres e 14% de artistas não-brancos. Alguém pode argumentar que 21% e 14% ainda não é uma estatística aceitável (e eu também concordaria), mas a mudança de 2004 para 2016 demonstra que, se curadores estão ativamente perseguindo o problema, então a mudança é possível mesmo em uma instituição como o MoMA onde, historicamente, pequenas mudanças nas coleções permanentes parecem nunca ocorrer. (Graças aos curadores associados com o Modern Women Fund, uma iniciativa em grandes museus que procura promover artistas mulheres no MoMA).

Por fim, ao invés de negar as estatísticas ou ignorar o assunto de gênero, raça e sexualidade, nós precisamos parar de dar desculpas e encarar esses problemas para encontrar soluções, possibilidades e estratégias para combater essas desigualdades. Curadores mainstream precisam se juntar aos curadores ativistas para trabalharem globalmente e coletivamente na mudança e transformar o que, enfim, é uma situação abominável para os “Outros” artistas do universo da arte. Agora é o momento de curadores trabalharem juntos para reconhecer o problema e encontrar uma solução para que diferentes pessoas e suas criações tenham a oportunidade de aparecer de forma igual.

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