O mundo da arte é responsável por Trump?

O cineasta Adam Curtis fala sobre porque a autoexpressão está separando a sociedade.

(Entrevista originalmente publicada em Artspace por Loney Abrams)

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No mudo, um filme de Adam Curtis pode se sentir como o tipo de montagem que você aprende em um curso iniciante de video arte, com surpreendentes jumpcuts entre passagens aparentemente incongruentes cenas encontradas. Mas aumente o volume e os efeitos visuais tornam-se um ensaio ilustrado sobre o poder – o poder invisível, o tipo mais perigoso, e as formas que ele molda o mundo em que vivemos.

O filme mais recente do produtor da BBC, HyperNormalisation, começa com uma premissa assustadora: “políticos, financistas e utopistas tecnológicos” criaram um “mundo falso” para se manterem ligados ao seu poder, permitindo que “as forças escuras e destrutivas cresçam e cresçam… forças que agora estão retornando para perfurar a frágil superfície de nosso mundo falso cuidadosamente construído.”

 

O restante do filme de quase três horas alterna entre assuntos como as rotinas de exercícios de Jane Fonda, Coronel Kadhafi como uma marionete política, o boêmio estilo de vida de Patti Smith e as táticas de bombardeio suicida – uma história que quase poderia parecer teoria da conspiração se não ressoasse tão convincentemente com a verdade observável. A capacidade de Curtis de expor o porquê e como a sociedade é a maneira como é – com nuances estéticos e um senso de humor – faz dele um objeto de culto, venerado por jornalistas e artistas.

 

Embora Curtis nunca se chamaria um artista, o cineasta e documentarista serial foi conhecido por flertar com o mundo da arte. Em 2012, Hans Ulrich Obrist curou uma retrospectiva dos filmes de Curtis no espaço de galeria da e-Flux. E, embora Curtis tenha sido bastante crítico da arte em sua falha ao desafiar o status quo, muitos artistas olham para o seu trabalho na construção de suas visões de mundo críticas.

Aqui, em um momento de grande revolta social muito parecido com o que Curtis descreve em seu novo filme, Loney Abrams, da Artspace, falou com o cineasta sobre suas opiniões sobre o papel da arte na política, o problema com a autoexpressão e o que os artistas podem fazer em nossa civilização fraturada.

 

No início de HyperNormalisation você fala sobre uma mudança que aconteceu nos anos 70, quando os artistas se desprendiam da realidade e se retiravam para garimpar conteúdo para seus trabalhos. Seu argumento é que esse tipo de autoexpressão individualista é antiética à mudança política. Como é isso?


O individualismo é a grande coisa do nosso tempo, e tanto a esquerda quanto a direita foram afetadas por ele. É essa ideia que vinha crescendo desde a contracultura dos anos 60 que realmente se concretizou na década de 1970 – a ideia é que aquilo que você sente e deseja como indivíduo são as coisas mais importantes e que se você seguiu qualquer um que lhe dissesse o que fazer você era inautêntico. As pessoas não acreditam mais que devem se doar à igreja ou aos sindicatos. Elas querem ser elas mesmos.

Foi uma mudança maravilhosa, porque nos impediu de sermos instruídos sobre o que fazer pelas elites e velhas hierarquias. Isso nos libertou disso e isso é realmente ótimo – somos, em grande parte, indivíduos livres. O problema com o individualismo é que, embora seja libertador e emocionante e bonito, quando as coisas ficam difíceis, você é muito fraco.  Se você entra sozinho em uma floresta à noite é assustador, não é? Você fica com medo pelo menor ruído, o menor estalar de um galho. Se você vai para a floresta com seu grupo de amigos, é incrivelmente emocionante e excitante porque você de alguma se sente mais forte. É simples assim. Isso é um ponto.

A outra parte dessa mudança no início dos anos 70 foi que mais e mais pessoas olhavam para a arte como uma maneira de expressar seu radicalismo de uma maneira individual. A biografia Just Kids de Patti Smith mostra claramente isso. Pessoas como ela e Robert Mapplethorpe não queriam ser apenas parte de grupos radicais, mas sim indivíduos desafiando o sistema. Embora isso possa ter sido abandonado por Mapplethorpe, ele permaneceu central para a crença de Smith. Mas o que eu estava tentando dizer no filme era que a própria ideia de autoexpressão poderia não ter tido o potencial radical que eles pensavam.

O que salvou a economia dos EUA da crise econômica dos anos 70 foi uma onda maciça do capitalismo de consumo. E atrás dela estavam as forças financeiras, porque elas ofereciam crédito a milhões de pessoas pela primeira vez. Em outra série que fiz chamado The Century of the Self (O Século do Eu), tentei mostrar como o outro componente essencial dessa onda de consumismo era a ideia de autoexpressão. As pessoas eram encorajadas a comprar todos os tipos de coisas, não para não se parecerem umas com as outras como no passado, mas sim para se expressarem como indivíduos. Desta forma, a própria ideia de autoexpressão tornou-se central para a estrutura moderna do poder.

Nós olhamos para eras passadas e vemos como as coisas que as pessoas acreditavam profundamente na época eram realmente uma conformidade rígida que as impediam de ver mudanças importantes que aconteciam em outro lugar. E às vezes me pergunto se a própria ideia de autoexpressão poderia ser a conformidade rígida de nossa época. Essa conformidade pode estar nos impedindo de ver ideias realmente radicais e diferentes que estão sentadas à margem – ideias diferentes sobre o que é a verdadeira liberdade, que têm pouco a ver com nossa fetichização atual do eu. O problema com a arte de hoje é que longe de revelar essas novas ideias para nós, ela pode estar nos impedindo de vê-las.

Esse conceito pode ser muito difícil de se aceitar, mas acho que isso é realmente importante: por mais radical que seja a sua mensagem como artista, você está fazendo isso por meio da autoexpressão – a ideologia dominante central do capitalismo moderno. E fazendo isso, você está realmente longe de questionar o monstro e de botar ele pra baixo. Você está alimentando o monstro. Porque quanto mais as pessoas acreditam que a autoexpressão é o fim de tudo, é o objetivo final, mais o sistema moderno de poder se torna mais forte, não mais fraco.

 

Como posso fazer arte sem alimentar o monstro?

Eu estava tentando dizer no filme que a maneira de questionar o poder é enfrentar isso. E para fazer isso, você tem que ir para a floresta à noite juntos. Você tem que ser poderoso e confiante como um grupo. E você tem que fazer essa coisa que eu acho que um monte de artistas modernos e pessoas modernas em geral acharia muito difícil de fazer: dar-se a algo que é maior do que você mesmo.

Existem outras ideias esquecidas de liberdade. Por exemplo, a ideia religiosa de liberdade – eu acho que a frase é “em Seu serviço a liberdade perfeita.” [N.do T.: Livro de Oração Comum da Igreja Anglicana]. Um exemplo que eu sempre dou é do movimento de direitos civis no final dos anos 1950 e início dos anos 1960 na América. Muitos jovens ativistas brancos das classes médias desceram ao sul, uniram-se aos jovens ativistas negros e, durante anos, trabalharam anonimamente, entregando-se ao que acreditavam. Muitos deles foram espancados, alguns deles foram mortos, mas eles realmente mudaram o mundo e eles fizeram isso dando-se a algo.

Desculpe por estar sendo rude aqui, mas atualmente a arte radical envolve ir em uma demonstração, ou fazer uma instalação que diz algo irritado, e depois ir para casa. E é isso. Você sentiu que se expressou, mas se você quer mudar o mundo, precisa se entregar a ele.

No meu país, o exemplo clássico disso foi a marcha contra a invasão do Iraque em 2003. Três milhões de pessoas marcharam através de Londres. Foi uma marcha realmente impressionante. E eles tinham este slogan que eu pensei que era muito do seu tempo: “Não em meu nome.” Esse é o definitivo protesto individual. Então o que aconteceu foi que todos voltaram para casa, sentindo que todos haviam protestado contra a guerra e que não era mais a sua guerra, e então não fizeram mais nada.

Eles realmente não fizeram mais nada. E como resultado, centenas de milhares de inocentes iraquianos e soldados americanos e britânicos foram mortos. Para quê? Você poderia ter impedido isso, mas para fazê-lo você teria que ter abandonado os próximos três anos de sua vida, a marchar todos os dias, a trabalhar contra isso e tentar mudar o temperamento. Você teria que se entregar a isso. Isso não se encaixa com a ideia do eu, ou da autoexpressão.

 

O mesmo pode ser dito para “Não É Meu Presidente” – o slogan de muitos manifestantes anti-Trump. Mas eu me pergunto se precisa ser tudo ou nada, como você diz. Já não estamos falando de arte se estamos dizendo que os artistas precisam parar o que estão fazendo e marchar por três anos. Acho que um dos problemas é que a arte política populista não é realmente valorizada pelo mundo da arte. O mundo da arte valoriza o trabalho que é denso e complicado conceptualmente – trabalho inacessível ao público em geral ou para pessoas sem uma educação em história da arte – mas também é fácil escrever sobre criticamente e para justificar a colocação dessas obras em museus. O outro tipo de trabalho que o mundo da arte valoriza é o totalmente benigno e inofensivo, que o mercado gosta porque é fácil de vender e de imaginar em sua sala de estar acima de seu sofá. Arte que é realmente desafiadora e também acessível não se encaixa realmente em qualquer uma destas duas categorias.

 

Essa é uma divisão muito clara e concisa, e eu concordo com tudo o que você disse sobre o que aconteceu com a arte nesse momento. A arte pode ser completamente obscura. Às vezes eu mesmo não entendo nada, como se fosse deliberadamente difícil de entender. E sim, o outro tipo é uma espécie de arte benigna e soft. A questão real para a arte no momento é que não só ela não mudou o mundo para melhor, ela pode ser parcialmente responsável pela reação contrária dos apoiantes Trump. A arte elitista, obscura, e até presunçosa que tivemos nos últimos cinco ou seis anos é parte do tipo de teimosia metropolitana que o Brexit reagiu contrariamente no meu país, e que os eleitores Trump reagiram contrariamente no seu.

Eu não estou criticando a arte que muitas pessoas produzem. Algumas dessas obras são muito boas, bonitas e tocantes. Só que a forma como que são feitas, através da autoexpressão, tendem a ter um efeito realmente muito mais profundo na sociedade do que o que o artista necessariamente pretendia. Ao passo que eu penso que se você olhar para a história da arte, a arte realmente brilhante dá um passo atrás e te mostra claramente o que realmente está acontecendo no mundo em que você vive, de uma forma vívida e imaginativa.

A coisa surpreendente em meu país depois do Brexit – e eu acho que provavelmente você está vendo agora depois da eleição de Trump – é que todos os hipsters metropolitanos olharam em torno um para o outro e pensaram: “Caralho, de onde essas pessoas vieram?” Eles nem sabiam que os apoiantes do Trump e os apoiantes do Brexit existiam, porque eles estavam tão dentro de sua pequena bolha que eles simplesmente não podiam vê-los. O que então aconteceu é que eles começaram a culpar essas pessoas, o que eu acho que foi bem ruim. Você ouvia em bares: “Deus, as pessoas realmente estúpidas estão no controle agora.” E eu só queria dizer: “Não, espere, você é estúpido: você perdeu a eleição.” Em vez de tentar culpar as pessoas pela votação, eles deveriam sair e descobrir o que realmente está acontecendo, projetar isso adiante e tentar mostrar por que as pessoas votaram assim. E para fazer isso você tem que identificar onde o real poder está em nossas sociedades. E isso é o que eu estava tentando fazer em HyperNormalisation.

O atual sistema de poder é fundamentalmente bem invisível para nós. Ele reside em finanças, em todos os novos tipos de gestão, dentro de computadores e da mídia, envolvendo algoritmos invisíveis que moldam e gerenciam as informações que recebemos. Acho que uma das coisas mais belas que os artistas e os jornalistas podem fazer neste momento é serem compreensivos e empáticos para com as pessoas que votaram em Brexit e Trump e, em seguida, trazer à tona as estruturas de poder invisíveis que essas pessoas sentem completamente distanciadas de si para que elas saibam onde está o poder. E fazer isso de tal forma que não fique obscuro para pessoas que como eu não tenham que ler três vezes só para compreender. Fazer de uma forma que realmente agarre a imaginação das pessoas comuns.

 

Acho que muitas pessoas diriam que o que você está descrevendo e pedindo é o que você realmente faz. Você se considera um artista?

Não, sou um jornalista que rouba muito da arte. Mas para ser honesto, eu não vejo muita diferença entre os dois, porque a função da arte e do jornalismo é sair e explicar o mundo para as pessoas, e fazer isso de forma vívida e imaginativa.

Eu acredito que você pode ser esperto, sendo também muito claro e imaginativo para a massa. Você pode às vezes sendo engraçado, usando músicas que as pessoas gostam, e escrevendo de forma muito simples clara. Mas você não pode fazer as pessoas comuns de bobas – eu venho de uma comunidade de pessoas da classe trabalhadora e sei que elas são bem inteligentes. Elas podem se sentir completamente isoladas, fartas e irritadas, mas não são estúpidas. Elas estão com raiva e receberam um gigante botão escrito “Foda-se!” e estão o pressionando. E eu acho que a mesma coisa aconteceu no Centro-Oeste do seu país. Eles não acreditavam nas histórias de Trump. Eles simplesmente receberam esse botão – e eles pressionaram.

Agora, a coisa que você pode fazer é o tipo de jornalismo que tanto explica as coisas, mas também agarra sua atenção. Acho que a grande arte pode fazer isso. Você sabe, grandes romances fizeram isso no passado – eles criaram mundos vívidos para você. Eu acho que os artistas têm recuado nos últimos 10 a 15 anos em alguma dessas bolhas obscuras que você descreveu ou recuaram para o dinheiro basicamente.

E eles fingem radicalismo, tanto quanto eu penso que o movimento Occupy era apenas radicalismo de desenho animado. Nada disso vai realmente sair e se engajar com o mundo – é um recuo. E acho que posso ser rude com os artistas porque estou sendo rude com minha própria profissão, o jornalismo também. Porque eu acho que a mesma coisa se aplica aos jornalistas.

Acho que o que está à espera de ser inventado é um novo tipo de linguagem imaginativa que descreve o mundo do poder, que é invisível para nós, e acho que tanto os jornalistas quanto a arte podem fazer isso, porque as linguagens atuais são tão chatas, tão obscuras e tão monótonas que as pessoas se afastam delas.

 

Para ser útil como artista ou jornalista, você deve alcançar o eleitor indeciso ou a pessoa-média americana – é isso que você diz. Mas há outra maneira de se pensar sobre isso: o público da arte contemporânea é o 1%. Nós já temos aqueles no poder, os ricos, prestando atenção ao que nós como artistas estamos fazendo. Então, ao invés de descobrir como chegar a uma audiência completamente nova, por que não tentar influenciar políticos, legisladores e as elites em geral?

Venho de uma tradição populista progressista e creio que, em algum lugar no final do século XIX, a arte se tornou muito mais democrática. As pessoas começaram a ler romances, começaram a gostar de filmes… e o que essas coisas faziam era levar as pessoas para fora do seu mundo e lhes dar outros mundos, transformando sua imaginação e ampliando seus horizontes. Eu acredito que você pode agarrar a imaginação das pessoas.

Por outro lado, porém, o que você acabou de dizer provavelmente está mais próximo da realidade do nosso tempo. Você argumenta que, dada a estreita relação da arte contemporânea com os ricos, então talvez os artistas deveriam tentar dizer aos ricos sobre o que realmente está acontecendo no resto da sociedade. Dessa forma, eles poderiam radicalizar os ricos.

Eu acho que você está certo, e sendo honesto, é a posição que a maioria das artes têm ocupado ao longo dos séculos. Os artistas têm sido financiados por aqueles que estão no poder e seu trabalho tende a refletir e expressar as opiniões dos que estão no poder, e os artistas inteligentes são aqueles que brincam com isso e as subvertem, na esperança de que aqueles no poder olhem para o mundo de uma maneira melhor.

Mas há algo mais que os artistas também podem fazer nessa posição. Eles podem dizer para nós, as pessoas, sobre os ricos. Eles podem nos mostrar o mundo da elite e riqueza de uma forma poderosa e dramática, concedendo-nos a vê-lo com mais clareza e, assim, tecer as nossas ideias sobre ele. Isso é algo que a arte fez no passado: olhe para as pinturas da Era Dourada (Gilded Age) e os barões ladrões na América, e os romances de pessoas como Frank Norris no início do século XX.

O problema com o mundo de hoje dos bilionários e plutocratas é que, ao contrário de praticamente todas as elites do passado no ocidente, eles não exibem sua riqueza. Na verdade, eles tendem a escondê-la: eles vestem mais modestamente, e embora vivam em luxo, eles tendem a serem reticentes sobre grandes exposições públicas como as que você vê em Zola (N. do T.: Émile Édouard Charles Antoine Zola, romancista e jornalista).

Mas, longe de nos oferecer insights sobre esse mundo oculto de riqueza e poder, a arte moderna tende apenas a vender coisas para essas pessoas, o que, mesmo sendo radical em sua mensagem, falha em nos mostrar esse mundo com clareza.

Desta forma, eu diria que a arte está ajudando a perpetuar o disfarce e o sigilo do poder moderno. Acho que um dos principais objetivos da arte radical deve ser mostrar-nos como funciona o poder, puxá-lo para a primeira fila para que você possa vê-lo – e, eu acho que nesta época de extrema plutocracia, ela está falhando muito em fazer isso.

 

Em uma matéria sobre o HyperNormaisation na Artforum, Tobi Haslett escreveu: “Curtis se recusa a registrar – de fato, obliquamente esnoba – o feminismo. Essa ação política e consciência coletiva também podem trabalhar para enriquecer o espírito individual – que já foi uma reivindicação muito incontroversa sobre a esquerda – é para ele uma insidiosa contaminação de sensibilidades políticas por nosso presente narcisista.” O que você acha dessa crítica?

O que eu disse a você anteriormente foi que o surgimento do individualismo tem todos os tipos de aspectos libertadores, um deles foi o feminismo. Esta é em parte a razão pela qual eu escolhi Nova York em 1975 como um lugar para começar a história que eu conto no filme, porque naquele momento muitos da esquerda radical deslocaram-se para longe dos ataques revolucionários sobre o estado para a ideia de libertar indivíduos de desigualdades sociais e culturais através do feminismo e do movimento pelos direitos dos homossexuais.

E concordo que um movimento fantasticamente bem-sucedido saiu disso e liberou a vida de milhões de pessoas. Isso é realmente bom. Você poderia argumentar que é nisso que a esquerda tem sido mais bem-sucedida: em mudar o comportamento dos indivíduos em relação uns aos outros.

Mas na mesma época, em Nova York, uma nova e confiante elite financeira assumiu o controle do governo democrático da cidade e fizeram isso quase sem oposição dos radicais e da esquerda. E o ponto que eu estava fazendo era que havia uma consequência imprevista para a esquerda que escolheu mudar seu foco para os direitos individuais. Isso permitiu uma mudança massiva de poder – para finanças e bancos – para prosseguir em grande parte sem ser examinado e sem oposição. Fora dessa mudança de poder que veio a extraordinária revolução econômica da direita com a qual vivemos agora e que domina todas as nossas vidas.

O que eu tentei sugerir era que ao se concentrar nos direitos dos indivíduos – e dos grupos de que fazem parte – os radicais possivelmente perderam de vista algo: que a única maneira de realmente desafiar o poder enraizado profundamente é através da ação coletiva em massa, Não através de um radicalismo arraigado no individualismo.

 

Em HyperNormaisation você cobriu a campanha de Trump, mas você o lançou antes que ele ganhasse. Eu tenho que perguntar: o que você acha que vai acontecer agora?

A razão que você prefaciou estas perguntas com “eu tenho que perguntar” é porque você e eu sabemos que nós não sabemos. Nós não temos ideia e ele sabe que nós não sabemos, então ele está brincando com isso também, que é parte do seu jeito. Em termos simples, o que penso é isto: Trump fez todos os tipos de promessas, algumas das quais – como assinalo no filme – são bastante de esquerda como, por exemplo, trazer empregos de volta para a América. Para isso, terá que desafiar sistemas de poder profundamente arraigados, de poder global, como as instituições financeiras, que se baseiam no fato de terem exportado mão-de-obra para produção de produtos baratos no exterior. Acredito que ele vai achar isso muito difícil. Se ele fizer isso, o que acontecerá é que esses sistemas de poder – que no momento são muito invisíveis para nós – virão mais em foco por causa de seu fracasso. Nós poderemos vê-los. E como resultado, você poderá ter a esquerda regenerando e começando a perceber o que tem para desafiar.

Isto é completa suposição e hipótese, mas se Trump achar que é muito difícil fazer o que ele faz, então, a localização do poder se tornará muito mais óbvia. E isso terá um efeito muito bom, tanto para a esquerda como para direita, e você poderá obter um retorno de verdadeiras lutas pelo poder e pela política real, ao invés do radicalismo de desenho animado que temos na esquerda no momento. Acho que vai ser muito bom – essa é a minha visão otimista.

Meu outro ponto de vista é que ele vai falhar e as coisas vão voltar para exatamente onde estão agora e você vai ficar com uma espécie de governo de direita tradicional na América, e na Grã-Bretanha, e tudo será hipernormalizado novamente.

Mas essas, eu acho, são as duas opções. Eu não acredito que ele vai se transformar de repente em um estranho cruzamento entre Franklin Roosevelt e Ronald Reagan. Eu não acho que ele tem o poder de fazer isso no momento.

O que eu achei realmente interessante, nos Estados Unidos, foi que foi Wisconsin que o fez se eleger. Há uma tradição progressiva muito forte em Wisconsin, e esse tipo de desconfiança sobre as elites pode balançar para a esquerda ou para a direita. Não há razão para que, no meu país e no seu país, os liberais e a esquerda não consigam dominar as pessoas que estão zangadas no momento. É só que eles são tão preguiçosos, tão trancados em suas próprias bolhas, que eles não conseguem.

Neste momento, com os liberais chorando pelo Brexit e pelo Trump, é o que eu chamo o Momento Princesa Diana para os liberais – todo mundo apenas chora ao invés de dizer: “OK, isso é democracia. É uma merda. Vamos lidar com isso. Vamos tentar e nos opor a isso e ver como podemos acabar com a crise”. Eles não estão fazendo isso, e isso é algo a ver com seu recuo. Eu suponho que teremos outra rodada.

A principal coisa que eu quero dizer é que o problema com a esquerda é que ela está obcecada com os problemas do indivíduo. O que negligenciaram foi o poder. É tão importante em nosso presente… e no discurso dos pensadores liberais, dos artistas radicais pensantes, a palavra “poder” é praticamente nunca mencionada – é como se ela não existisse.

Mas, na verdade, o poder molda tanto o seu mundo. Isso é o que eu estava tentando mostrar no filme, que mesmo na câmara de eco que você ocupa no Facebook, existem pedaços de código escrito que estão moldando o que lhe é dado. Isso é poder. Há computadores movimentando dinheiro por toda parte. Isso é poder. Temos apenas de tentar e trazê-lo em foco. Mas, como estamos tão presos às perguntas do indivíduo, perdemos de vista as questões do coletivo, e isso envolve poder.

 

As pessoas entendem o ativismo em um sentido individualista também. Quero dizer, acho que muitas pessoas realmente reconhecem que seu feed do Facebook é uma câmara de eco, e elas entendem que não estão vendo uma imagem precisa do que está acontecendo – mas para combater isso, ao invés de dizer: “Nós precisamos desafiar o Facebook” ou “Precisamos desafiar a forma como a mídia é apresentada para nós”, elas dizem: “Eu mesmo preciso resolver isso procurando e adicionando pessoas conservadoras, assistir Fox News etc.”. Da mesma forma que eu poderia dizer: “Sou ambientalista porque reciclo minhas garrafas plásticas”, em vez de exigir que a Springs Poland (N. do T.: marca de água engarrafada) considere uma alternativa mais sustentável ou que o governo dê incentivos fiscais às alternativas ao plástico. Pensamos em nós mesmos como ativistas, fazendo pequenas mudanças no modo como consumimos coisas – seja consumindo mídia social ou garrafas de água – e esquecemos de olhar para cima para os poderes que nos carregam com essas escolhas.

 

Você tem que fazer algumas coisas. Você está certo – você pode olhar para a cima dessa cadeia e perguntar de onde ela veio, e você tem que fazer algum trabalho, como um bom jornalista faz e um bom artista deve fazer. Você vai descobrir essas coisas e então ter de encontrar maneiras de trazer esse poder para a frente, mostrá-lo à massa, e então encontrar maneiras de desafiá-lo. Essas tendem a ser atividades que não são apenas as do indivíduo.

Eu pensei sobre a imagem que realmente resumiu para mim: a fotografia do protesto do lado de fora da Trump Tower. Eu acho que foi dois dias depois da eleição, e havia uma menina segurando um cartaz que dizia: “Eu me sinto tão triste.” E eu pensei: “Bem, isso não é suficiente.”

Eu sinto muito porque, você sabe, chegamos a este ponto que é brilhante – onde todos nós somos autorizados a nos expressar. Há cinquenta anos, não fomos autorizados a fazer isso, então é ótimo. Isso é sobre o feminismo, sobre os direitos dos homossexuais, sobre todas as coisas boas que fizemos. Mas, ao mesmo tempo, ficamos trancafiados no individualismo que está no cerne disso.

O que temos de reconquistar de alguma forma, é a ideia – e essa é a verdadeira chave para a política no futuro – que permitia que as pessoas sintam que são indivíduos, com direitos e que desejam fazer o que quiserem fazer, mas também sentirem que podem se entregar a algo maior. Resolver essa questão será o futuro da política à esquerda. Alguém tem que encontrar uma maneira de fazê-lo.

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