No mesmo barco

Narrativas românticas e positivistas assumiram o mito do indivíduo com tanta avidez que o trabalho coletivo no campo das artes visuais aparece como excentricidade contemporânea, muito embora não seja necessário mergulhar fundo na história para encontrá-lo no grupo impressionista, nas trocas entre Van Gogh, Gauguin e Bernard, nas diversas vanguardas.

O compartilhamento de espaços, materiais, técnicas, contatos, temas e ideias não é prerrogativa do suposto anonimato dos antigos artífices; também caracteriza muitas realizações de arte moderna.
Preferimos ignorar os documentos sobre o trabalho coletivo de artistas modernos porque fomos convencidos de que as pessoas só se expressam integralmente pela produção artística individual. O trabalho de arte passa a ser entendido como criação do indivíduo porque é o seu último refúgio real no contexto da alienação do trabalho nas sociedades modernas. Coletivos de artistas contemporâneos atacam esse enquadramento tanto ao torná-lo visível quanto ao mostrar que um outro mundo é possível.

O Lugar do outro Lugar do Coletivo 2e1 é o trabalho coletivo de indivíduos reais. Cada artista aparece com sua linguagem própria e assina o seu trabalho, mas se apropria ou se contamina de elementos dos outros. Cada realização demarca um local em que as dimensões relacional e pessoal podem coexistir. O espectador desembarca em lugares cujas particularidades coexistem com traços de contato com outros lugares, movimento conectado com a dinâmica de circulação de imagens no contexto de sociedades integradas pelo desdobramento de modos de produção.

A imagem do lugar aparece como motivo recorrente em pinturas de Ana Roberta Lima, Kika Goldstein e Lilian Walker, embora cada uma aponte para uma direção distinta. Ana Roberta Lima enfatiza a pincelada e convida a refletir sobre se o gesto puro e simples pode ser ele mesmo “um lugar para se estar” (como diz Paulo Pasta). Kika Goldstein, por sua vez, prefere jogar com a instabilidade das formas. Em sua pintura, formam-se o que ela chama de “aglomerados”, regiões compactas que por vezes não se juntam senão nos istmos e nas quais se abrem fendas. O fundo pelo qual flutuam essas placas, à deriva, resplandece com o dourado dos ícones.

Lilian Walker retoca fotografias da pele encontrando paisagens no órgão que ao mesmo tempo delimita o corpo e proporciona o seu contato com o mundo ao redor. Se o corpo é um meio para imagens, a pele é um dos seus principais suportes. Sobre a pele se aplicam a maquiagem e a tatuagem em sociedades tradicionais. Nas sociedades modernas, não se maquia apenas para produzir imagens, mas para apagar a pele, corrigi-la e purificá-la. Lilian Walker cria paisagens da pele à maneira das fotografias aéreas para reagir contra essa higienização.

Reação ao purismo também é a postura de Sheila Ortega nas pinturas, fotografias e instalações que acumulam elementos heterogêneos em “composições”. Nelas Sheila Ortega proclama o apreço pelas coisas do mundo, às quais a pintura pura volta as costas. Sua pintura contém referências diretas e indiretas aos demais participantes do Coletivo, assim como a fotografia de Luana Lins, que, por sua vez, integra extensa pesquisa sobre a construção do gênero feminino na cultura contemporânea. Ela cria uma imagem que lembra o movimento tropicalista com objetos reunidos tanto como referências aos outros integrantes do grupo quanto como críticas à construção do gênero, mas com a figura da artista ao centro, acumulando as funções mágicas e técnicas tradicionalmente impostas às mulheres.

Para Pierre Lapalu não é novidade trabalhar com a multiplicidade de perspectivas. Em A Sociedade Cavalieri (2013-2015), ele criara “mistos mirabolantes” atribuídos a uma sociedade fictícia de importantes personagens da história da arte. Trabalhando desta vez com um coletivo real de artistas contemporâneos, Lapalu usou recursos digitais para criar mandalas de anamorfoses de pinturas barrocas. Tornando essa intertextualidade visível e invisível ao mesmo tempo, Um Aleph remete ao conto de Borges sobre um ponto específico que funciona como perspectiva universal.

Laura Teixeira também proporciona uma espécie de síntese do Coletivo com trabalho em forma de rede produzido com silicone e linhas coloridas. O formato de rizoma sugere associação entre os vínculos estabelecidos pelos artistas do grupo e as ideias de Deleuze e Guattari sobre o crescimento a partir de todos os pontos no pensamento e na política. O procedimento rizomático praticado pela artista explica o funcionamento do Coletivo como um todo. O abandono de uma referência central de pensamento e poder parece tentador diante dos desmandos da “grande política”. Mas como viver juntos no que o filósofo Peter Sloterdijk chamou de “hiperpolítica”? Algumas criações do Coletivo ressaltam as fronteiras, em lugar de diluí-las.

Val Schneider, por exemplo, coleta a água de um ponto específico do Rio Uruguai, onde passou a infância, e mergulha pinturas dos rostos dos participantes no líquido, tudo contido numa caixa de vidro. Mergulhadas na água, as pinturas formam imagem poderosa da memória. Hans Belting explica que toda imagem é ao mesmo tempo física e mental, uma vez que a visão se processa no cérebro e a imaginação usa visões como matéria-prima. O trabalho de Val Schneider é uma espécie de imagem da imagem mental. Ao contrário do Aleph, que se abre para o todo, o recipiente criado pela artista parece isolar as imagens dos outros no fluxo da memória pessoal. Em lugar do todo em cada parte, ela afirma que somente se olha para os outros a partir de uma perspectiva própria e pessoal.

Myriam Zini atinge resultado análogo com a intervenção pictórica sobre páginas de jornal A perfect day 1. Prática recorrente da artista, ela resiste à inércia da forma caracterizada por McLuhan como componente da “galáxia de Gutenberg”, impondo sobre a impessoalidade da tipografia a marca pessoal da pintura na forma de palimpsestos. Para o Lugar do outro Lugar, ela apresenta composição que reúne jornais do Brasil, onde viveu, e do Uruguai, onde vive atualmente. O trabalho de arte resiste à impessoalidade das instituições, mas seria capaz de problematizar as diferenças espaciais, sociais e culturais?

O sentimento da particularidade predomina em Super- homem de Inês Quiroga. Fragmentos manuscritos sobre papel japonês descrevem imagens nas quais se misturam os registros da recordação pessoal e da referência erudita, de si e dos outros. Na sobreposição dos papéis, o que vem à frente se destaca de um fundo ativo, de modo que cada percepção visível seja situada em reciprocidade com uma série de experiências acumuladas, porém invisíveis. Toda percepção resulta dessa interdependência entre sensação e memória, de modo que funciona como imagem, que é expressão de um “fundo” (conforme Jean-Luc Nancy). Os heróis dos mundos da arte e da vida coexistem neste trabalho de Inês Quiroga como operadores dessas conexões entre percepções que revelam o próprio ser, percebido como relação, o que convém ao aspecto “relacional” (no sentido de Nicolas Bourriaud) do trabalho coletivo.

O trabalho de Priscila Rampin propõe ainda uma outra forma de considerar a dimensão relacional e imaginal da realidade humana. Trata-se da apropriação de cartazes com ofertas de feitiços de amarração, que proliferam nas metrópoles, embora sejam típicos de sociedades tradicionais. O antropólogo Alfred Gell explica que o feitiço de amarração tem origem no culto às imagens, existente “no mundo inteiro”, uma vez que é a partir da ligação entre a pessoa e a sua imagem que o feitiço opera. Estamos amarrados uns aos outros exatamente como estamos ligados à nossa própria imagem, já que não nos percebemos como indivíduos senão em relação aos outros.

Alina Duchrow oferece versão surpreendente desta interdependência com trabalho que flerta com a sensação caracterizada por Freud como unheimlich, ou estranhamente familiar. A artista assume o projeto de refazer desenhos de sua irmã gêmea. O automatismo do trabalho desconstrói as características tradicionais da autoria e da inspiração. Além disso, a estratégia compreende a ampliação de desenhos íntimos para a existência pública das obras de arte. Arte e não-arte, íntimo e público, eu e o outro, o ser e a imagem envolvem- se na estranha troca de olhares entre dois corpos originalmente iguais, porém essencialmente diferentes.

O lugar desse enfrentamento com os outros é o tema da fotografia de Herika Bauer. A artista manipula técnicas de exposição de luz e ampliação, obtendo transparência e inversão das cores. Na imagem não aparecem pessoas no espaço, mas um espaço de pessoas, constituído pelas próprias relações humanas. Os efeitos de luz e cor não ofuscam a individualidade de cada pessoa, mas ressaltam uma certa continuidade dos corpos, como se fossem feitos da mesma coisa, sendo essa “coisa” que são não algo que “cai do céu” ou resulta do acaso, mas o próprio produto das suas interações.

Diz-se que Duchamp refugiava-se no xadrez dos dilemas enfrentados durante a elaboração do Grande vidro entre 1915 e 1923, mas o jogo pode ser um modo de compreender o funcionamento do mundo da arte. Wagner Priante cria trabalhos por meio da antiga técnica da cerâmica, o que remete a uma busca moderna pelo arcaico, como o uso da têmpera em Volpi e a apropriação dos ícones bizantinos praticada por Malevich. Trata- se, portanto, de um artista com referências modernas, que transita pelo meio da arte contemporânea, mas que domina procedimentos que remontam ao Neolítico e técnicas quase tão antigas quanto a própria prática da agricultura. Para o Lugar do outro Lugar, ele produziu jangada que transporta tabuleiro com peças de formas diferentes. As metáforas complementares do barco e do jogo abrangem a diversidade das relações travadas pelos artistas do Coletivo 2e1 por meio do seu trabalho. As peças individuais apontam para os polos da singularidade e da esfera pessoal.

O grupo realiza, ainda, a performance Conta pra mim, de autoria da coordenadora Carolina Paz. Com um telefone de copo e barbante, os artistas compartilham com o público histórias relativas ao processo de criação e discussão coletiva. O brinquedo popular inicia muitas crianças na experiência de transmitir. Lá e cá, consigo e com os outros, fazendo e sentindo, o Lugar do outro Lugar é mais do que uma modalidade original de arte relacional; é uma expedição pela dimensão imaginal das relações humanas e pela dimensão social da produção de imagens.

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