A arte triunfa sobre o comércio? – Parte 3

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Temas que depois surgem em estudos psicanalíticos da sexualidade, da angústia de castração e de fetichismo, abundam na cultura humanista, desde os pontos conflitantes de perspectiva de Holbein em “Os Embaixadores” (1533), até a “Natureza Morta” de Ruysch (cerca de 1700). Ambas as pinturas que têm a ver com o conhecimento mundano e noções religiosas da providência. Nenhuma delas, no entanto, tem a simplicidade desafetada de Caravaggio como visto no “Menino com uma Cesta de Frutas” (cerca de 1594). A vanitas de Caravaggio parece quase a antítese de Donatello. Ele parece dizer : o diabo pode se preocupar – vá em frente, sujar as mãos e desfrutar os frutos do prazer sensual.

O “realismo” de Caravaggio é distante das confecções eruditas do período maneirista ou do classicismo barroco. Na obra de Caravaggio, temas religiosos são feitos palpáveis por um naturalismo corajoso que consegue cumprir os mandatos pedagógicos dos teólogos da Contra-Reforma, no entanto, isso não significa que foram melhor apreciados pelo público. Na verdade, eles não foram. Como sabemos, a partir do sucesso da arte barroca, a massa subalterna preferiu se deliciar com o espetáculo de riqueza, glória e poder. Em contraste, há um distúrbio inquietante na obra de Caravaggio que poderíamos, a partir de um ponto de vista contemporâneo, associar com a formação do ego e da instabilidade sobre a psiquê em relação às operações da visão e das exigências do superego. Isto é especialmente presente em obras como “Cabeça da Medusa” (1598), “Narciso” (1600), e “A incredulidade de São Tomé” (1601).

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Por que Schama escolheu começar sua série com a Contra-Reforma? Poderíamos responder a esta pergunta, indo de volta no tempo em algumas décadas. Em meados do século XVI, o Papado havia sido saqueado por monarcas estrangeiros. Uma das razões para isso foi porque na época de Maquiavel, o poder de um rei não era relacionado ao apoio popular dentro de uma cultura local, mas sim à autoridade sobre o planejamento central e a burocracia, movendo-se na direção do tipo de absolutismo que associamos com a rainha Elizabeth I ou o rei Luís XIV. Temos, no século XVI, os primórdios do capitalismo moderno, com a produção em grande escala de bens e da indústria, a organização bancária, bolsas de valores, empréstimos do Estado, seguros e especulação… todos esses fatores criando oportunidades para desastres financeiros que obrigaram os governantes a se engajar quase constantemente em guerras.

A história da Reforma Protestante é a história quixotesca de lutas baseadas na fé contra este novo mundo da economia capitalista. Os líderes da Igreja como Martinho Lutero agitava os nobres para lutarem contra insurreições camponesas e apoiar a classe média, que paradoxalmente, queria livrar-se dos privilégios da classe feudal. Enquanto isso o protestantismo surgia no norte da Europa, como a baliza moral da maioria dos camponeses, rapidamente se tornando a fé da classe média emergente. Uma de suas características era um interesse na interioridade da fé contra o esplendor e a riqueza corrupta da Igreja.

A consequência política da Reforma, no entanto, foi a Contra-Reforma Católica, que marcou o início de um “realismo político” e de uma doutrina de padrões duplos – um para os poderosos e ricos e outro para os pobres. O humanismo renascentista e iluminismo foi substituído pela idade do naturalismo científico. Culturalmente isso levou a uma naturalização da política, fazendo a desigualdade parecer normal e natural. Este é o calvário em que a maioria dos valores liberais de hoje foram criados. A ideia de que em um país pluralista há liberdade para todos, para todas as criaturas grandes e pequenas, de acordo com o poder de Deus e do Governo, a mesma lógica que deu origem à ideia do Império Britânico, nasceu surpreendentemente, na Europa Católica. O campo de treinamento para o “realismo político” hoje é a mídia de massa:  televisão, rádio, cinema, jornais. Entre 1500 e 1600 foi a propaganda da Igreja.

(continua)

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